sexta-feira, 11 de março de 2016

Intervenção do Presidente do Governo

Texto integral da intervenção do Presidente do Governo, Vasco Cordeiro, proferida hoje, em Ponta Delgada, na sessão de abertura do I Encontro Daniel de Sá:

“As minhas primeiras palavras são, naturalmente, para agradecer aos organizadores deste encontro o amável convite que me foi dirigido para estar hoje aqui convosco e poder partilhar este momento de evocação de um grande Açoriano, a propósito de duas das áreas da sua atividade: a Literatura e a Política.

Estamos a referir duas componentes da intervenção pública de Daniel de Sá que em muito contribuíram, embora não esgotem, a sua condição de contribuinte ativo para a reflexão e o debate político, bem como para a produção cultural, a qual em muito extravasou os limites da nossa Região.

Foi a globalidade da marca que deixou que levou a que, em 2010, a Região, por decisão do Parlamento dos Açores, lhe atribuísse uma das suas distinções honoríficas, a Insígnia Autonómica de Reconhecimento, e que, em 2014, por impulso e proposta do então Secretário Regional da Educação, Ciência e Cultura, Prof. Doutor Luiz Fagundes Duarte, o Governo dos Açores tivesse criado o Prémio de Humanidades "Daniel de Sá", destinado a galardoar, em cada biénio, uma obra inédita, com a temática "Açores".

Aliás, a vencedora da primeira edição desse prémio foi a obra "Mau Tempo e Má Sorte: Contos Pouco Exemplares", da autoria da Professora e Investigadora Leonor Sampaio da Silva, hoje também aqui presente.

A isto acresce, em especial na temática política, a circunstância de ser feliz a ideia de evocar os 40 anos da consagração constitucional da Autonomia Político-Administrativa dos Açores e da Madeira, no âmbito da evocação da figura de Daniel de Sá.

Não porque, pela data do seu nascimento, ele partilhe com ela – a Autonomia - o dia e o mês do momento formalmente fundador do primeiro grau de Autonomia dos Açores.

Não porque exatamente hoje completam-se 35 anos e quatro meses sobre da data em que ele cessou as suas funções como deputado regional.

Mas sim porque essa é, quanto a mim, uma boa forma de homenagear o seu trabalho como parlamentar regional, não só referindo aquilo que a Autonomia permitiu e permite em termos de desenvolvimento material e progresso económico, mas, também, passadas quatro décadas da sua consagração, questionando, refletindo e argumentando sobre os desafios que, nesse domínio, o Presente e o Futuro nos colocam.

Ao Daniel de Sá, que integrou a Junta Regional e que foi deputado na primeira e na segunda legislaturas regionais, mas também ao Daniel de Sá que questionava, que refletia e que prospetivava, procurámos hoje, dessa forma, prestar tributo.

Para termos uma ideia do caminho percorrido basta referir que, nas vésperas da Autonomia, os Açores partilhavam com o resto do país elevados níveis de subdesenvolvimento estrutural, económico e social educacional:

•             O Produto Interno Bruto per capita da Região, em 1974, era de apenas cerca de 45% do PIB nacional;

•             As pescas não tinham dimensão de sector económico, antes de quase mera subsistência. A frota, além de reduzida, era mal equipada, e quase não havia portos de pesca devidamente equipados nas nossas ilhas.

•             O turismo era meramente residual, com apenas cinco hotéis em todo o arquipélago, e notava-se uma grande falta de infraestruturas e de equipamentos nas áreas de transporte aéreo e marítimo e, também, ao nível da circulação rodoviária.

•             Apenas duas ilhas tinham portos artificiais e as outras tinham, somente, pequenos cais de ancoragem. Apenas cinco ilhas tinham aeródromos civis, que não apresentavam condições para receber aeronaves de médio-grande porte.

•             Em termos de saúde, as principais instalações estavam localizadas apenas nas duas maiores ilhas e, na educação, havia ainda poucas escolas, sendo que as existentes estavam mal equipadas. 40% das localidades dos Açores nem sequer as possuíam.

Se é, assim, certo que este atraso não era exclusivo dos Açores, também não é menos verdade que foi a Autonomia a grande responsável pelo seu combate, permitindo melhorar a vida e o bem-estar dos Açorianos. Cumprindo, no fundo, a sua função mais nobre: servir o seu Povo.

Hoje, 40 anos passados sobre a consagração constitucional da Autonomia, os Açores,

•             De acordo com os dados oficiais da União Europeia, atingiram um PIB per capita de cerca de 91% da média nacional.

•             O nível de infraestruturas rodoviárias, portuárias, aeroportuárias mudou substancialmente e constituem, hoje, componentes fundamentais da nossa competitividade económica e da mobilidade dentro e para o exterior da Região.

•             Os nossos setores tradicionais – agricultura e pescas - reforçaram o seu papel como pilares essenciais da economia açoriana e o turismo assume, cada vez mais, uma importância económica crescente, como provam os dados de 2015 – o melhor ano de sempre neste sector.

•             As políticas sociais e de apoio aos que se encontram numa situação de maior fragilidade materializam-se em medidas concretas que, algumas delas, só existem na Região e alcançaram, ao longo dos anos, maior abrangência e diversidade, mesmo perante alguma incompreensão nacional.

A Autonomia foi, é a grande responsável pela substancial melhoria das condições de vida e de bem-estar do nosso Povo nestes últimos 40 anos, permitindo que, a cada momento, fossem os Açorianos a decidir a aplicação dos recursos financeiros e a definição de medidas e políticas regionais.

E a forma como encaro as causas e esses resultados não tem a ver com qualquer maioria plenipotenciária, para utilizar a expressão de Daniel de Sá, mas sim com o contributo de todos, oposição e poder de outrora, como oposição e poder de agora, para o desenvolvimento da nossa Autonomia.

Mas o desenvolvimento económico e infraestrutural que, em Autonomia, temos construído ao longo destes 40 anos, à medida que se vai concretizando, à medida que se vai completando - mesmo que com a persistência de fenómenos que não permitem euforias - levanta, quanto a mim, um conjunto de outras questões, porventura, mais profundas e mais estruturantes do que a construção de infraestruturas.

E não me refiro à vexata quaestio da correta conformação constitucional ou estatutária da nossa Autonomia.

Sendo certo que, às vezes, como ainda recentemente aconteceu, e hoje é reproduzido nos jornais, com a legislação sobre a exploração e ordenamento marítimo, o Tribunal Constitucional tem a gentileza de nos lembrar que este não é ainda um assunto encerrado.

Ao invés, o que julgo importante salientar a este propósito, é que a Autonomia não pode ser encarada, nem pelos Açorianos, nem pelos seus protagonistas políticos e até institucionais, como um qualquer plano de fomento em que se ajuíza do seu sucesso pelas obras realizadas ou pelo conforto material que as mesmas proporcionam.

Há novos desafios, para não dizer novos perigos, que espreitam e para os quais necessitamos de estar devidamente despertos e mobilizados.

Há novos desafios para a Autonomia que não têm qualquer componente externa ou que não dependem, em primeiro lugar, de qualquer ato exterior à Região.

Eles resultam tão só, em minha opinião, de colocar as Açorianas e os Açorianos frente à nossa Autonomia, frente ao nosso modelo de governo, frente ao nosso modelo de representação.

A nossa Autonomia só́ tem condições de ser bem sucedida e de perdurar no tempo, aprofundando-se e desenvolvendo-se, se for acarinhada e cuidada pelos Açorianos.

E a forma como a nossa Autonomia deve ser cuidada e acarinhada pelos Açorianos está geneticamente ligada à vitalidade da Democracia e ao reconhecimento de que estas, Democracia e Autonomia, são as únicas condições para a nossa afirmação como Povo e como Região.

Por isso, julgo também ser importante que nos interpelemos quanto à capacidade que a nossa Autonomia tem demonstrado, não só́ de cativar e de motivar os Açorianos, como de por eles ser reconhecida como instituição imprescindível ao seu governo.

Poucas vezes no passado como nos últimos três anos a perceção da importância da nossa Autonomia terá sido tão evidente.

A verdade é que, apesar de não estarmos isentos dos efeitos da austeridade, foi a nossa Autonomia que permitiu que puséssemos em prática medidas e políticas para que as famílias e as empresas açorianas ficassem, apesar de tudo, mais protegidas, mais defendidas, mais abrigadas dessa tempestade que ainda nos assola.

Mas mais do que a questão instrumental, mais uma vez fortemente ligada à componente material, o que pretendo significar com os desafios que atrás referi, é a necessidade de avançarmos para outras áreas em que, ao mesmo tempo que a Autonomia deriva da Democracia, ela age e intervém no sentido de a defender, de a promover e de a reforçar.

Estamos, assim, perante um desafio que, em primeiro lugar, não depende de nada nem de ninguém a não ser dos Açorianos, a começar pelos protagonistas políticos, sejam ou não institucionais, até ao cidadão que se expressa e participa, por direito e dever, na nossa vida coletiva.

Sei bem que ao analisar, ao questionar, ao propor e ao tentar reformar os contornos, por exemplo, da relação entre eleito e eleitor, o mesmo é dizer, ao questionar um dos aspetos que deveria ser essencial na vitalidade da nossa Democracia, esse pode ser terreno onde as armadilhas da demagogia, do populismo e da irresponsabilidade medram e provocam danos.

Mas este é o desafio, diria mesmo que este é o imperativo atual, a que ninguém pode virar costas, sob pena de, baixando os braços, isso bastar para que os salvadores de ocasião surjam e possam causar danos irreparáveis à nossa Democracia e, por conseguinte, à nossa Autonomia.

Para termos a consciência da importância e da urgência desse desafio, basta atentarmos no crescente distanciamento entre os cidadãos e as instituições políticas que os deveriam representar.

Precisamos de nos empenhar todos na construção de soluções que reforcem o envolvimento dos Açorianos nas decisões da sua vida coletiva e democrática e que os façam sentir, cada vez mais, como parte integrante e integrada da nossa Autonomia.

Precisamos de desbravar novos caminhos nos quais se entrecruzem as soluções de aproximação entre os eleitos e eleitores, com soluções de mobilização para o exercício e o escrutínio democrático, soluções de responsabilização individual, mas, também, de maior e mais diversa responsabilização coletiva, de melhor organização nos processos de decisão.

Temos, no fundo, de ser mais autónomos e mais livres.

Temos, dentro da nossa Autonomia, de fazer diferente. Porque fazer diferente aqui, é defender a Democracia, é defender a Autonomia, é defender os Acores.

Mas, neste contexto, julgo importante salientar um dado que me parece essencial: a melhoria da correspondência entre aquilo que a Democracia oferece e aquilo que os cidadãos dela esperam, só pode fazer-se dentro da Política e não fora dela.

A resposta à demagogia e ao populismo em que alguns aparentam embarcar inconscientemente, não está em criarmos soluções fora da Democracia ou diminuindo a Política e a sua capacidade de intervenção.

A solução não está em termos menos Política, mas em termos, no verdadeiro sentido etimológico do termo, mais Política, mais aperfeiçoada, com maior capacidade de resposta, com cada vez maior transparência e menos sujeita ou dependente de fatores estranhos e, porventura, adversos da linear relação que se deve estabelecer entre representantes e representados.

Essencial aqui é a promoção e existência de uma cidadania esclarecida, atuante, participativa e empenhada que não se resuma à participação esporádica e irregular nos atos eleitorais, nas redes sociais ou nas rodas de amigos, mas que assuma verdadeiramente a responsabilidade da participação substantiva e que seja proponente de soluções. Não apenas de crítica.

E que seja também uma cidadania que não se furte nem se esconda do juízo e do veredicto dos nossos concidadãos.

E se assim agirmos, e se conseguirmos vencer mais este desafio, julgo estarem criadas ou, pelo menos, reforçadas as condições para que confirmemos a nossa Autonomia como aquela que é sentida pelos Açorianos, não apenas como um instrumento de conforto e de bem-estar, mas também como um ativo valorizador da sua condição de cidadãos, da sua condição de Açorianos participantes na definição do futuro da sua terra.

Estão criadas ou, pelo menos, reforçadas as condições para que, cada vez mais, a nossa seja uma Autonomia respeitada, prestigiada e reconhecida, não pela conflitualidade verbal do debate de soluções ou da falta delas, mas como a emanação de um Povo orgulhoso da sua história, da sua capacidade de vencer e da sua resiliência.

Uma Autonomia aberta ao mundo, desassombrada e destemida, que tenha a segurança que advém do valor da sua história e do seu Povo, que não se feche sobre si mesma, que não se enclausure na finitude do nosso território, mas que tenha a ambição de se afirmar e de se dar a conhecer ao mundo, na sua cultura, na sua arte, nas mais genuínas expressões do seu viver.

Uma Autonomia que seja encarada pelas Açorianas e pelos Açorianos, e por todos os que com ela contactem, como o grande legado que esta geração recebeu dos Açorianos que nos antecederam, mas que é igualmente o legado que a próxima geração espera que lhe passemos.

E entre os construtores desse legado, se não na forma, seguramente no espírito dessa Autonomia que nos queremos, está Daniel de Sá, credor do nosso reconhecimento pelo muito que, desinteressadamente, deu à cultura e à vida política e cívica dos nossos Açores.”



GaCS

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