domingo, 13 de dezembro de 2009

O PRESÉPIO DE MEU PAI - Mário T. Cabral




Meu Pai comprava o trigo logo nos primeiros dias de Dezembro, por volta desta mesma data que hoje estamos a festejar. Semeava-o em pequenos vasos Vista Alegre, que adornavam a beira da chaminé ao longo do ano. Durante a quadra, passavam para a janela da cozinha, onde o sol lhes batia à tarde. Também pintava farelos de corante vermelho, amarelo e verde, aproveitando os dias frios e luminosos para os pôr a secar no pátio, sobre plásticos. Mandava ainda fazer uma cancela em miniatura.




Era assim que o Advento entrava em nossa casa. Mas, fora estes preparativos, nada mais era comparável à ânsia actual de acender luzes nas casas, nas ruas e nas montras, mesmo antes do dia oito, mesmo antes do Advento ter início. A nossa festa iria ser montada na véspera do dia de Natal, mesmo quase à hora da missa do Galo. E desmontada só depois do dia de Reis, bonequinhos que o Pai virava ao contrário, no dia 6 de Janeiro, a caminho de regresso.


Valia a pena esperar tanto.


Estendia um grande plástico no sobrado do quarto-de-jantar, que era chamado "o meio da casa". Procurava evitar a humidade dos pastinhos de veludo, das lagoas, da erva-patinha, das cascas de árvores, da cortiça e outros elementos naturais. Este cuidado nunca resultava por completo, ficando manchas brancas muito para depois do dia de Reis, para escândalo de minha Mãe, que pegava fogo.


A mesa e as cadeiras iam para outro compartimento; e a aldeia sagrada crescia caprichosa e atrevida, a partir do vão da janela e do cedro, a um canto, gigantesco, até ao tecto. Era para ser visto da rua. Por isso, não se fechavam as portadas. Ao tempo, os enfeites eram de quebrar e, para nosso infortúnio, tinham um fascínio tal, um feitiço ou magia tal que, difícil de evitar, terminava em tragédia. Eram bolas de vidro com raminhos dentro, socas de pinho doiradas, lanternas ligadas umas às outras por pérolas...Meu Pai era uma alma santa e, depois da fúria intempestiva, dava-nos uns guarda-chuvas de chocolate, que estavam nos galhos mais altos, guardados para o dia seguinte.




O nosso presépio começava do alto, num declive acentuado por socalcos habitados com casinhas com cão de guarda. Iam aparecendo matanças de porco anacrónicas, assim como um padre de batina e chapéu de três bicos, à conversa com um sacristão de opa vermelha, no adro duma igreja muito igual às nossas de tamanho real, que estava mesmo ao lado da gruta, que era manjedoura à moda antiga. Ao lado, ficava uma imagem de mulher, muito maior do que as outras, quase do tamanho da igreja, conhecida por nós pela Isabel, vá lá saber-se porquê. Que eu saiba, não há notícia da prima de Nossa Senhora ser gigante. Mas nós, na família, ainda dizemos "aquela Isabel", quando falamos duma mulher grande.


A igreja e as outras casinhas da aldeia já tinham iluminação eléctrica, em pisca-pisca, cujo fio era escondido por caminhos surrealistas, amarelos e vermelhos, os tais que tinham sido preparados no princípio do mês. Aconchegado na erva-patinha que rodeava a gruta, um galo: «Pedro, Pedro, três vezes me hás-de negar». Devido a ser de plástico e, portanto, muito leve, tinha a tendência de tombar sobre o tecto da gruta, forrado de coco, a fingir que era neve. Ainda dentro dos muros da manjedoura, pastores carregados de ovelhas e acompanhados de rebanhos... e mesmo na ponta do telhado, um anjo de louça, pendurado com um fio de arame dourado, que trazia uma faixa com o «Gloria in excelsius Deo».


O Pai ocupava o dia todo nesta miscelânea absolutamente encantadora para nós, crianças proibidas de tocar em fosse o que fosse, ou sequer falar. Vertia naquele mundo em miniatura os seus dotes artísticos, que eu herdei. Fazia intervalos. Nós, ansiosos. A Mãe, desesperada. Entretanto, voltava, mudando este pormenor, ali, aqueloutro, acolá. Com todo o cuidado e vagar, alçava a perna e escolhia com rigor anatómico o apoio para o pé, de modo a chegar ao sítio. Por último, fazia um muro de pedrinhas e fechava o caminho principal com a tal cancela que fora encomendada para o efeito.


Exausto de contemplar o Reino, eu, o mais moço, aconchegava-me na mesa, para dormir, não sem antes avisar minha Mãe para me acordar a tempo da missa do galo. «A Mãe acorda-te. Agora vem para a cama». Era uma mentira. Nunca me acordou. Só passei a ir à missa do galo quando tive idade para esperar acordado pela meia-noite. No dia da festa, de manhã muito cedo, íamos cantar, ainda de pijamas, já com os cordões de oiro e os relógios das ofertas, íamos cantar ao Menino Jesus o «Noite de paz, oh noite de silêncio", o «Ò vinde, marchemos todos em tropel para Belém» e o «Feliz Natal, feliz Natal, Jesus nasceu, feliz Natal»...


Nunca, nunca mais dias destes, que não eram dias mas saltos por cima do tempo e do espaço, da circunstância; do real para o ideal ou Divino - visão do Reino, que Aquele Menino nos vai ensinar, é este o seu primeiro milagre.


Depois de meu Pai morrer, passei a ser o responsável pela instalação da festa. Como já disse, fui eu que herdei os dotes artísticos. Durante muitos anos, tudo mudou na minha interpretação da aldeia divina. Sou incapaz de imaginar o Natal fora da Casa das Tramóias e sem presépio. Mas, confesso, tive os meus tempos, como direi, modernos, quase protestantes. Entretanto, Deus foi trabalhando dentro de mim e a minha fé foi crescendo e ainda antes de ser franciscano já os meus presépios - não voltando a ter a ingenuidade pura dos de meu Pai - podem ser reconhecidos como seus filhos e legítimos herdeiros.


Para começar, deixaram de ser feitos no quarto-de-jantar, por não haver já quarto-de-jantar, nas voltas que uma casa dá sobre si própria. A árvore passou a ser muito mais pequena e, por vezes, cheguei a tê-las artificiais e estilizadas, ficando os enfeites de meu Pai encolhidos de vergonha no caixote de sabão Sonasol, no sótão. Tinha acabado de chegar de Lisboa e tudo aquilo me parecia tão pobre! Reduzia o enorme presépio paterno a uma frugal gruta montanhosa, muito histórica e intelectualizada, feita mesmo de pedra, com pequenas árvores à escala, com três a quatro pastores muito verosímeis e os reis magos cá em baixo, a subir, dia após dia, até chegarem ao seu destino, marcando a Epifania (lembram-se de ter dito que meu Pai os punha a descer no dia em que eles tinham chegado?). O anjo com a faixa «Gloria in excelsius Deo» nunca foi abandonado, bem como um outro trio angélico tocador de violinos e flautas. Introduzi o calendário e a coroa do Advento.


Na graça de Deus, fui-me dando conta que a minha concepção, embora, à primeira vista, pudesse parecer ilustrada e amadurecida, era pouco católica, na essência, para além de recusar a frescura artística da obra de meu Pai. Ser católico é ser universal, sair do tempo e do espaço, viver no Reino, que atravessa os séculos e os lugares como o fio de pérolas que ligava as lanterninhas do cedro de meu Pai. O Natal é substancialmente um anacronismo: não é um acontecimento do passado, É O acontecimento. Viveram-no, em simultâneo, os séculos todos, visto o tempo sagrado ser redondo, não linear. Uma das grandes vantagens do Catolicismo está nesta rebeldia do coração que tudo vive e compreende melhor do que o próprio raciocínio.


Os últimos anos têm sido uma hecatombe rápida de mais. De repente, é como se não fôssemos um país católico. Quase ninguém faz o presépio e a quadra tornou-se uma farsa sem substância, algo de cínico e, pois, insuportável. Épocas históricas iguais à nossa são períodos excelentes para desenvolver a fé, porque os contrastes são tão evidentes que uma pessoa é levada à bruta a tomar consciência profunda de si.


Como é possível que, num regime democrático, não compreendam a história narrada no presépio?: uma criança pobre e desprotegida, filha dum carpinteiro, é adorada pelos reis e senhores do mundo. Com certeza a maioria das pessoas não deve saber o que veio ensinar este Menino: falou de liberdade e de amor, de justiça e de paz, de esperança e de alegria. Como é possível que não entendam a revolução que os anjos gritam nas trombetas?


Ou estará a democracia a ficar cega e surda, a precisar dum milagre?


Foi São Francisco de Assis quem inventou esta tradição celestial. Enquanto responsável pelos franciscanos dos Açores, sugeri, este ano, que cada fraternidade fizesse um pequeno presépio que coubesse num tabuleiro, e que o trouxesse para o nosso retiro anual, que aconteceu aqui, neste velho convento, a semana passada. Os nossos oito pequenos presépios já estão expostos na rua da Sé. Lembrado de meu Pai, sugeri que trouxéssemos canções antigas para cantarmos aos pés do Menino; e assim o fizemos; e assim cantámos.


Sábado passado fiz o meu presépio, na casa onde habitamos há cinco gerações. Este ano fi-lo em forma de altar, que também é um modelo tradicional. Comprei uns belos anjos, de pé, com uma hástea onde se coloca uma vela. Parecem guerreiros, embora, ao mesmo tempo, sejam mulheres, com seus penteados à moda antiga, suas saias abaixo do joelho e seus sapatos à «Famosos Cinco». Já trouxe para baixo os caixotes com os tesouros de meu Pai. Preciso de tempo para ver o que faço com tudo aquilo.


Mas já tenho a certeza que vou construir uma espécie de cornucópia, donde toda a minha fortuna sairá, esfuziante de esperança.


Mário T Cabral, A. D. 2009


Mário T Cabral é natural da ilha Terceira, Açores onde mora. Franciscano da Ordem Terceira, Doutor em Filosofia, poeta, romancista e pintor. O seu livro - O Acidente - foi distinguido com o Prémio John dos Passos para o melhor romance publicado em Portugal em 2005/2006 (Porto: Campo das Letras). O seu primeiro livro publicado foi de crónicas - Histórias duma Terra Cristã (1996) - seguido de O Meu Livro de Receitas (Guimarães: Pedra Formosa, Poesia, 2000) e de O Livro das Configurações (Porto: Campo das Letras, Romance, 2001); o último é de filosofia e tem por título: Via Sapientiæ: da Filosofia à Santidade (Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2009). Voltará à poesia em 2010, com Tratados (Guimarães: Opera Omnia). Está traduzido em espanhol, inglês e letão. Os desenhos inclusos em Tratados pertencem a Eudemim: O Regresso ao Belo (Sinestesias) - exposição de 53 desenhos na Carmina Galeria, Terceira, em 2005. A sua última exposição foi de arte sacra e teve como título Gratia Plena (Convento de São Francisco, Lajes do Pico, 2008).

por: Irene Maria F. Blayer

Fonte: RTP

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