quinta-feira, 31 de maio de 2012
Intervenção do Secretário Regional da Presidência
Texto integral da intervenção do Secretário Regional da Presidência, André Bradford, proferida, hoje, em Ponta Delgada, na sessão de abertura do colóquio internacional Serviço Público: Limites E Desafios:
“Permitam-me que comece por partilhar convosco a satisfação, institucional e pessoal, que tenho em participar na sessão de abertura desta iniciativa de debate e reflexão sobre o Serviço Público de Rádio e Televisão na Região, pela sua valia e pertinência óbvias, mas também porque constitui um exemplo muito bem-sucedido de colaboração empenhada e de genuína comunhão de esforços entre o poder executivo e a Academia, em nome do interesse geral e das preocupações e aspirações da sociedade civil açoriana – afinal a razão de ser primordial da existência e da ação das instâncias autonómicas de Governo e de Formação.
Cumpre-me também, nesta ocasião, sublinhar a atualidade da temática escolhida para este primeiro colóquio, que é naturalmente reforçada pelo contexto da dita reestruturação organizativa e financeira da empresa concessionária e, particularmente, pelos desenvolvimentos que se esperam para os próximos dias, em particular no que concerne à prestação do serviço público de rádio e televisão nos Açores.
Tenho a certeza de que muitos de nós preferiríamos participar num evento menos emergente, que permitisse uma reflexão mais distanciada das urgências concretas e das medidas que alguns classificam de inevitáveis, mas também estou certo de que uma das maiores falhas de todo este processo reside precisamente no caráter avulso das decisões e na falta de fundamentação e ponderação sobre as consequências do que se quer obstinadamente impor – e, por isso também, este colóquio cumpre uma função cívica fundamental.
A diversidade dos oradores, e dos debates que espero se possam vir a desenvolver no decurso destes dois dias, permitirá uma reflexão aturada sobre as diversas dimensões do serviço público de rádio e televisão na Região e dará, por essa via, uma noção mais clara das várias posições em jogo e, acima de tudo, de um conceito atualizado de serviço público regional, adequado, na sua dimensão, estrutura e custo, à realidade que tem por obrigação servir.
É essencial que esse debate se faça “olhando para fora”, isto é, na ótica do que os açorianos esperam do seu serviço público de rádio e televisão e não do ponto de vista das preconceções de cada grupo de interesses. Mais do que quase nunca, os tempos são de cedência no particular em favor da firmeza na defesa do interesse coletivo.
A prestação do serviço público de radiodifusão e de televisão pressupõe, desde a origem do conceito, forjado enquanto ideal iluminista aplicado aos então novos meios de comunicação, um conjunto de características que o tornam único e que, apesar das variantes no tempo e no espaço, se podem encontrar na definição fundadora de John Reith, primeiro Diretor-Geral da British Broadcasting Corporation, quando afirmou que “o serviço público é essencialmente um padrão e uma perspetiva”.
Na base dessa perspetiva, que é sobretudo organizacional e de modelo de funcionamento, e desse padrão, que é primordialmente um standard médio de exigência nos conteúdos, deverão figurar princípios como os da universalidade de acesso, da diversidade de programação, da atenção às especificidades e às minorias, da informação de pendor cívico e do enriquecimento sociocultural.
A BBC, por exemplo, ícone histórico das entidades prestadoras de serviço público audiovisual, foi concebida na sua origem como “entidade pública que deverá funcionar como garante institucional do interesse nacional”, segundo se pode ler nas recomendações do relatório do chamado Comité Crawford, criado em 1925 para definir as linhas orientadoras do modelo de gestão, então apenas, da rádio no Reino Unido. Em traços gerais, a BBC originária – aquela que depois viria a ser conhecida pelo dito popular “há duas coisas certas todos os dias: o nascer do sol e a BBC” – foi criada, quanto aos seus conteúdos, para ser séria, educativa e até erudita, admitindo-se o objetivo (hoje quase pecaminoso) de elevar o nível intelectual dos públicos, com base num modelo de gestão de cariz independente, quer face à influência política, quer em relação às pressões comerciais.
Por isso, foi criada por carta real, e não pelo Parlamento, e o seu funcionamento foi financiado por uma taxa aplicada aos aparelhos recetores de rádio e, mais tarde, de televisão, ao invés do recurso à publicidade.
Foi também neste conceito fundador que, com maiores ou menos significativas adaptações, se inspirou o modelo português e os sucessivos diplomas legais que o foram, a cada momento histórico, enformando. Também no nosso caso, o serviço público audiovisual foi concebido com preocupações de universalidade geográfica e de promoção da coesão nacional, de diversificação, de qualidade e segmentação da programação, de pluralismo e rigor, de isenção e de independência informativas.
Foi, pois, no sentido de prosseguir tais princípios, muito especialmente os de coesão nacional e da diversificação - de que a autonomia regional é uma importante expressão - que a Lei da Televisão de 2007 impôs que a concessão do serviço público incluísse necessariamente, e cito, “dois serviços de programas televisivos especialmente destinados, respetivamente, à Região Autónoma dos Açores e à Região Autónoma da Madeira”.
A existência da RTP Açores – nas suas valências Televisão e Rádio - não se tratava então, como não se trata hoje, de um capricho dos Açorianos, nem de uma despesa para a República. Tratava-se sim, como se trata hoje, de uma obrigação do Estado - inclusivamente do ponto de vista da igualdade de direitos –garantindo o acesso à informação e a entretenimento que traduzissem a identidade açoriana.
Foi com base neste mandato que a RTP Açores se tornou, ao longo dos seus 37 anos de emissão, num dos pilares da edificação da autonomia açoriana, unindo as identidades dispersas de ilha num sentir comum, de Região, que concedeu também unidade e projeção aos Açores fora do seu espaço geográfico e territorial.
Foi também durante muitos anos a RTP Açores o único canal através do qual os açorianos recebiam informação, quando já todo o resto do país acedia em condições de igualdade às transmissões das duas antenas da Televisão Nacional.
Substituiu aí a RTP Açores as obrigações de igualdade que pendiam sobre o Estado como um todo. Mas mesmo hoje, num tempo em que é também possível aceder-se nos Açores aos canais nacionais de serviço público, garantir um tratamento igualitário a todos os portugueses no acesso e fruição do serviço público de rádio e televisão continua a significar tratar o que é diferente de maneira diferente, dar a cada um o que é justo, fornecer um serviço equitativo, que para ser igualitário não pode ser igual. Esta, que é também a razão de ser primeira da Autonomia, é também, e infelizmente, muitas das vezes a nossa razão mais difícil de explicar e fazer singrar.
É verdade que este trajeto histórico não foi construído sem dificuldades de afirmação no contexto nacional e sem ter de lidar com as limitações que resultam de exercer a sua atividade em nove ilhas e de não ter os meios humanos e técnicos suficientes para garantir, a todo o momento, uma cobertura equilibrada e justa para todos os açorianos. É também imperioso reconhecer que, de tempos a tempos, Lisboa, fosse qual fosse o partido político que a cada momento governava o país, insistia e pressionava para que os açorianos se contentassem com um serviço público mais reduzido e mais barato, por muito que os termos utilizados fossem “mais moderno”, “mais ágil” ou “mais flexível”.
Mas não é menos verdade que nunca como agora, a coberto de um pretenso estado de necessidade financeira que, sempre que é ideológica ou politicamente conveniente, suspende a Constituição e transforma a Lei em letra morta, se tornou tão eminente e concreto o ataque de pendor centralista ao âmago do serviço público de rádio e televisão na Região.
Ao longo dos últimos dez meses, o debate que se instalou na Região, mas também fora dela, sobre o que significa (ou deve significar) a prestação de um serviço público audiovisual numa região insular, fragmentada, e dispersa fez por esquecer frequentemente a constatação básica de que a garantia de um serviço público de televisão e rádio nos Açores é, no modelo português, consagrado constitucionalmente e de base estatal, uma decorrência direta e natural dos próprios princípios fundamentais e do espectro de obrigações do Estado, e é uma necessidade indissociável das próprias características geográficas, históricas, económicas e culturais da Região.
Num Estado de Direito democrático e que reconhece constitucionalmente a autonomia de parte do seu território, o que se espera de quem governa não é que diga sobranceiramente “quem paga, manda”, mas, ao invés, que, com base no reconhecimento responsável de que “quem deve, paga”, se disponibilize para procurar consensos e garantir soluções de equilíbrio, devidamente fundamentadas e assentes em demonstrações indiscutíveis.
Em todo este tempo em que se debateu a necessidade de proceder à concentração do horário de emissão da RTP Açores nunca o Ministro da tutela ou o Conselho de Administração da RTP demonstraram a “poupança” que uma medida deste tipo introduziria nos objetivos orçamentais da RTP e nunca se prestaram a debater com os órgãos de Governo próprio dos Açores mecanismos de gestão que conduzissem, esses sim, aos mesmos objetivos sem a necessidade de ações tão atentatórias da autonomia e da capacidade de ação da RTP Açores.
Os decisores nesta matéria preferiram sempre aplicar à força uma posição fechada, dogmática e desinformada a debater com racionalidade os objetivos a que se propunham e os pressupostos dos mesmos, até porque - parece-nos - a racionalidade acabaria por desmentir os seus propósitos de forma cabal. Se não vejamos:
A RTP Açores recebe hoje do orçamento da RTP a nível nacional cerca de 11 milhões de euros e a RTP Madeira cerca de 9 milhões. Esses valores rondam aquele que tem sido o financiamento recente da RTP Açores à luz do Contrato de Concessão - ou seja, à luz daquilo a que o Estado se obrigou perante a empresa. Mas mais, estes valores são uma gota no orçamento global da RTP, que a nível nacional recebeu 233,400 milhões de euros de fundos públicos, e não têm comparação com os 520 milhões de dívidas que serão assumidas pelo Estado em nome da RTP até Julho próximo.
Quanto aos custos de grelha, os números de 2011 ascenderam no caso da RTP Açores a um milhão de euros, os mais baixos de todos os canais da RTP - com a RTP Memória logo acima (1 milhão e 77 mil euros) seguida da RTP Madeira (1 milhão e 99 mil euros). E as despesas de investimento, que englobam, entre outras coisas, a melhoria de instalações, equipamentos e meios de produção, não representaram mais de 2 milhões e 100 mil euros.
Se mais dúvidas houvesse, o apuramento dos resultados operacionais de 2011 é claro: a RTP Açores teve um resultado líquido positivo de um milhão novecentos e dezanove euros e isso quando ao longo dos últimos cinco anos já vinha reduzindo em cerca de 1 milhão de euros por ano o seu orçamento.
Portanto, atendendo a uma perspetiva exclusivamente quantitativa – lógica que hoje parece impor-se a todas as outras considerações e inclusive, em alguns casos, à legalidade – a argumentação que foi sendo produzida – lá e cá – desde o anúncio da decisão de reduzir a emissão da RTP Açores não tem fundamento.
Mas, em paralelo com a falsa noção de custos exorbitantes da RTP na Região, foi sendo criada uma sensação de que quer o Conselho de Administração quer o Governo da República trabalhariam para promover a “autonomização” da RTP Açores a longo prazo, termo que significaria a capacidade da Televisão e da Rádio públicas nos Açores promoverem mais conteúdos próprios e terem maior liberdade editorial.
Ora, também aqui as primeiras decisões enquadradas nessa lógica demonstram claramente que a teoria, na prática, é outra coisa completamente diferente. Por um lado, e no imediato, registamos uma intervenção direta no horário de emissão da RTP Açores e na sua capacidade editorial de dispor da antena para promover os programas que mais dizem respeito aos açorianos, alguns de resto com níveis de aceitação históricos. E, por outro lado, verificamos um desejo confesso do Governo da República e da RTP no sentido de uma desresponsabilização a longo prazo da obrigação de financiarem exclusivamente a existência e funcionamento do Centro Regional.
Em paralelo, outros por cá, têm apoiado a ideia singular de que o serviço público de televisão nos Açores – no seu atual estado - só pode ser melhorado se for refundado e que a concentração horária permitirá impulsionar esse renascimento, esquecendo-se que, no entretanto, terão contribuído para a minimização irreparável do papel social e cultural da RTP Açores e para a fragilização profunda da sua capacidade de atuação no plano regional.
Da parte do Governo, temo-nos oposto sempre a esse caminho e continuaremos a fazê-lo enquanto for legal e politicamente possível. Temo-lo dito e voltaremos a dize-lo: no presente quadro conceptual, constitucional e legal, a existência e o financiamento de um serviço público audiovisual específico para as Regiões Autónomas é competência exclusiva da República. Quem pretender outra solução, terá de promove-la no âmbito de uma redefinição do conceito e da legislação que regula o serviço público de rádio e televisão, processo que, a acontecer, terá necessariamente de envolver todos os legítimos representantes dos interesses em jogo.
O Governo dos Açores continua disponível para, de forma ponderada e em diálogo aberto, envolvendo também os responsáveis regionais da RTP, encontrar uma solução adequada para a necessidade de redução de custos operacionais da RTP A, mas para tal terá de haver uma fundamentação precisa do que se pretende, do que isso implica em termos de regime de funcionamento, de disponibilização de recursos, de repartição de encargos e competências. Em suma, terá de haver uma proposta concreta e devidamente estruturada, que possa atestar a todos os Açorianos que estamos perante um processo legítimo de redefinição das responsabilidades da República para com a Região e não em presença de uma obstinada medida de quem não compreende nem respeita a Autonomia Regional.
Até ao momento, de forma contraditória e inconclusiva, o que tem sido dito sobre esta matéria pelos responsáveis nacionais (e também por algumas vozes nos Açores) remete a solução preconizada para um suposto modelo “societário”, com partilha de capital público - nacional e regional - e privado. Ainda que se trate de um negócio impossível à luz do atual enquadramento legal, uma vez que a Lei da Televisão determina a concessão do serviço público a uma única entidade ou empresa, o certo é que o Governo dos Açores nunca recebeu qualquer proposta formal nesse ou em qualquer outro sentido.
Ao Governo Regional cumpre sim a obrigação de, na defesa da Autonomia e dos interesses dos Açorianos, fazer tudo o que estiver ao seu alcance para evitar que, através do incumprimento da lei, o Governo da República avance gradualmente para a redução ao mínimo do serviço público de rádio e televisão nos Açores. É por isso que, a confirmar-se a reestruturação da grelha e a concentração da emissão de produção regional em horário vespertino específico - que será aplicada, ao que sabemos, já na próxima semana – avançaremos, como já havia sido anunciado, com uma providência cautelar e com uma ação judicial que garanta o cumprimento do Contrato de Concessão de Serviço Público de Televisão, em específico no que se refere às obrigações relativas à RTP Açores.
Não há da nossa parte, como nunca houve, qualquer recusa em dialogar ou qualquer intransigência que não seja a defesa dos legítimos direitos dos nossos concidadãos.
Reconhecemos que haverá certamente muito que melhorar na prestação de serviço público de rádio e televisão nos Açores. Poder-se-á fazer mais, poder-se-á fazer melhor, poder-se-á mesmo fazer mais e melhor por mais barato, mas essa é uma realidade que só se pode construir partindo do pressuposto de que a RTP Açores tem uma identidade própria, um horário alargado e um funcionamento que é regido não pelos ditames orçamentais da Administração ou pelos impulsos voluntariosos da tutela, mas sim pelas necessidades da população que serve.
Para nós, a verdade última é que a RTP Açores assegura que a comunicação social fala do que nós somos, que nos mostra uns aos outros, torna claro que temos sotaques e não um só sotaque, que as nossas sopas do Espírito Santo não sabem todas ao mesmo, que não é preciso morrerem pessoas para que uma catástrofe natural mereça ser noticiada e nos faça ser solidários, que não chove todos os dias em todas as ilhas, que até chove numa freguesia mas na outra ao lado está sol, que aqui existem poetas, criadores, inovadores, empreendedores, que não nos sentimos isolados por vivermos no meio do mar mas antes irmanados num desígnio comum, que, mesmo com a maré baixa, não conseguimos ir a nado de umas ilhas para as outras, que nos sentimos parte de Portugal, que somos a razão de ser de haver Portugal na América do Norte, que os brasileiros e os uruguaios resgatam a memória dos nossos antepassados que ajudaram a fundar os países que hoje têm – enfim, que a nossa identidade se forjou porque nós nos passamos a conhecer, pela rádio e pela televisão, e que isso não tem preço ainda que possa, de facto, ser mais barato.
Muito obrigado pela vossa atenção e votos de bom trabalho.”
GaCS
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