domingo, 27 de setembro de 2009

Navios dos Descobrimentos concentrados nos Açores







"Os Açores detêm talvez a maior concentração a nível mundial de navios da Idade dos Descobrimentos". A afirmação é do arqueólogo Paulo Monteiro, que durante o seu trabalho na Carta Arqueológica Subaquática dos Açores, compilou cerca de 600 naufrágios ocorridos no arquipélago



Como foi a sua experiência de seis anos a trabalhar nos Açores e que importância tem para a Região a Carta Arqueológica Subaquática?



Nos seis anos em que me dediquei à arqueologia subaquática nos Açores destaco, sem sombra de dúvida, o verdadeiro desafio que foi o elaborar a primeira Carta Arqueológica Subaquática da Região, um trabalho feito documento a documento, em arquivos regionais, nacionais e internacionais, e que ainda hoje se encontra em actualização permanente.



Depois de anos a depender de informação escassa, fantasiosa ou de proveniência mais que duvidosa, a Direcção Regional da Cultura podia finalmente saber quantos eram, onde estavam e quais eram os navios naufragados no arquipélago.



No fundo, passou a deter uma ferramenta de gestão da informação sobre o património cultural subaquático, real e potencial, podendo geri-lo nas suas vertentes de salvaguarda, estudo e valorização.



Os naufrágios das águas açorianas têm a capacidade de vir a fornecer muitas respostas às questões que hoje em dia se levantam no que concerne à evolução do desenho e da construção naval em madeira, às práticas náuticas e aos circuitos de comércio e guerra naval pós-medievais.



Entre os Séculos XVI e XX, há registo de cerca de 600 naufrágios nos Açores, muitos deles de "navios de tesouros". Sabemos actualmente onde estão esses navios e temos meios - a nível regional ou nacional - para recuperar esses tesouros?



Os Açores detêm talvez a maior concentração a nível mundial de navios da Idade dos Descobrimentos.



Com efeito, situadas a meio caminho entre a Europa e o Novo Mundo, no centro de confluência dos ventos dominantes do Atlântico Norte, as ilhas dos Açores constituíram, desde o final da Idade Média, uma base de apoio à navegação europeia que regressava da Ásia, da África e das Américas e foram, muitas vezes, as testemunhas imperturbáveis do fim trágico de várias dessas viagens, em que fazenda, vida e honra se perdiam por entre a imprevisibilidade do mar e os actos de guerra próprios de uma nova ordem geopolítica mundial.



Contudo, mais do que mero folclore trágico-marítimo, os cerca de 600 naufrágios das águas açorianas constituem um santuário intemporal do património cultural subaquático.



Não os podemos ver sob a perspectiva do tesouro venal, do ouro, da prata e da porcelana chinesa. Eles são sim, muito para além das riquezas fabulosas que alguns transportavam, um testemunho único de um passado que moldou países, continentes e até civilizações.



Não nos podemos esquecer que, até ao advento do transporte aéreo, quase tudo e todos os que vinham para estas ilhas vinham a bordo de navios.



Tendo em conta os processos de naufrágio mais comuns nas ilhas, eu diria que cerca de 95 por cento dos naufrágios aqui ocorridos fizeram-se de encontro à costa. Logo, acho que é perfeitamente viável, com os meios que Região detém agora, fazer-se prospecção e escavação arqueológica dos navios que entender serem fundamentais para colmatar as lacunas que existem no conhecimentos sobre a construção náutica, por exemplo.



Aliás, isso mesmo tem vindo a ser feito com regularidade por José Bettencourt, um arqueólogo de superior valor técnico que, integrado no Centro de História do Além Mar e num projecto da Direcção Regional da Cultura e das Universidades Nova de Lisboa e dos Açores, tem vindo a desenvolver um trabalho notável na baía de Angra.



Em todo o caso, o grande problema, quer a nível nacional, quer a nível regional, não é tanto a detecção e a escavação de naufrágios... O problema é a fase que se segue, a da estabilização, conservação e restauro dos artefactos. Depois de 400 anos submersos em água do mar, estes necessitam ser submetidos a processos muito demorados e dispendiosos de conservação.



Infelizmente, não se apostou no País neste ramo do saber e pouco progredimos nesse campo desde 1996, ano em que tratámos um canhão de bronze recuperado ao largo de Angra com uma saca de 50 kg de citrato, pedida emprestada à empresa de refrigerantes FAV.



Quais foram os mais importantes naufrágios ocorridos nos Açores?



Não há propriamente uma listagem de naufrágios ditos "mais importantes"... Importa saber aquilo que cada investigador considera ser mais importante em termos científicos.



Numa opinião meramente pessoal, diria que qualquer vestígio de navio português é importantíssimo, pois sabemos hoje mais sobre os navios romanos do que sobre a forma como se construíam, equipavam e armavam os navios dos Descobrimentos.



Pelo mesmo ponto de vista, qualquer navio ibérico com tesouros a bordo é importante, pois nunca algum foi escavado arqueologicamente, sendo todos os que foram encontrados até agora pilhados e destruídos por caçadores de tesouros.



Assim sendo, importantes para estudo serão os vestígios da nau da Índia "Nossa Senhora da Luz", naufragada no Faial em 1615; os do galeão espanhol "Nuestra Señora de las Angustias y San José", perdido nas Flores em 1727 e os das naus perdidas na tempestade de 1591. Na Terceira, as nau-capitânia, "Santa Maria del Puerto", "Madalena" e "Revenge"; nas Formigas, o galeão "San Medel y Céledon"; na Graciosa, um patacho espanhol; junto ao Topo, em São Jorge, outras duas naus também espanholas e em São Miguel, duas naus das Índias Espanholas e um galeão biscaínho.



Os Açores estão protegidos, em termos de legislação, da "caça ao tesouro" estrangeira? Se não estão, o que deveria ser feito?



Portugal ratificou a Convenção sobre a Protecção do Património Cultural Subaquático, da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO).



Esta Convenção entrou em vigor para os Estados que a ratificaram a 2 de Janeiro de 2009, sobrepondo-se, como Convenção internacional que é, à lei ordinária portuguesa.



No seu artigo Artigo 15º afirma-se que os Estados tomarão medidas para proibir o uso do seu território para apoio a qualquer actividade dirigida ao património cultural subaquático que não esteja em conformidade com a Convenção.



Por isso, havendo vontade política – e está-se a trabalhar nisso em termos interministeriais – qualquer navio que se dedique ao saque de naufrágios poderá e deverá vir a ser proibido de entrar em águas territoriais portuguesas, uma vez que a Convenção estabelece que o património cultural subaquático não deverá ser negociado, comprado ou trocado como bem de natureza comercial.



Como é que se caracteriza a "caça ao tesouro" e que tipo de instituições ou empresas a praticam?



Pilhagem e caça ao tesouro é tudo aquilo que incide em todos os vestígios da existência do homem de carácter cultural, histórico ou arqueológico que se encontrem parcial ou totalmente, periódica ou continuamente, submersos há, pelo menos, 100 anos e que não se reveja nas boas práticas instituídas pelo estado ético, metodológico e científico da arqueologia no momento.



Ou seja, enquanto a arqueologia é feita de acordo com regras científicas publicadas e segundo um código deontológico, aprovado e seguido pela grande maioria dos arqueólogos, o ‘esbulho’, a caça ao tesouro e a espoliação não seguem essas regras nem esse código.



A agravar este facto, há a regra não escrita que diz que não há uma maneira certa de escavar, porque escavar é destruir... Escavar um navio é como ir lendo um livro raro, único e ir queimando-lhe as páginas à medida que as vamos lendo.



Só se tem uma única oportunidade de registar tudo o que for possível registar. Se falharmos um pequeno detalhe, essa informação perder-se-á para sempre; por isso os arqueólogos têm de fazer registos rigorosos de tudo o que escavam.



Os caçadores, pelo contrário, não perdem tempo com estas coisas, pois "tempo é dinheiro"... Os caçadores de tesouros só se interessam por artefactos com valor de mercado e, pela própria natureza do objecto social das suas empresas, têm de pagar os salários com o produto da venda dos artefactos.



Ora, isso faz com que o objectivo da escavação não seja a aquisição paciente, rigorosa e demorada de conhecimentos que é o objectivo da arqueologia.



Por outro lado, se os arqueólogos estudam contextos - já que os artefactos não têm muito interesse fora do contexto em que foram encontrados - os caçadores recuperam-nos simplesmente, obliterando o contexto para sempre.



Imaginemos uma cena de um crime, com um cadáver na rua, de um homem assassinado: se o caçador de tesouros surgir em cena, revolver-lhe-á os bolsos, tirar-lhe-á a aliança e roubar-lhe-á a carteira, deitando os documentos fora e ficando com o dinheiro que tiver dentro... A vítima será enterrada, ficará para sempre incógnita e o crime por punir; mas se, pelo contrário, o arqueólogo surgir primeiro, então fotografará o cadáver, recolherá as impressões digitais na cena do crime, analisará as fibras de tecido, etiquetará tudo o que encontrar, identificará a vítima, avisará os seus familiares, dissecará o cadáver e, eventualmente, descobrirá os culpados.



Que fins são dados aos "tesouros" recuperados e quem regula essa actividade?



Os navios de um determinado período e de uma determinada cultura são um recurso finito.



Uma vez afundados e pilhados - ou escavados - desaparecem para todo o sempre.



Não são, literalmente, propriedade de alguém ou de um país em particular. São património da Humanidade.



O país ou a região que tem a sorte de os ter nas suas águas deve considerar-se como guardião de um recurso histórico precioso e envidar todos os esforços de forma a protegê-lo e estudá-lo, ou seja, gere-os em nome da Humanidade.



Bem feitos, esses esforços engrandecem quem os desenvolve, gerando mais-valias para a região, quer através da musealização desse património, quer por toda a dinâmica de investigação criada.









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