Texto integral da intervenção do Presidente do Governo Regional dos Açores, Carlos César, proferida hoje, no Faial, na cerimónia de inauguração da Casa Museu Manuel de Arriaga:
“Fazendo jus ao ditado popular – “os últimos são os primeiros” – encerramos hoje, conforme foi nosso compromisso, as comemorações nos Açores do I Centenário da República Portuguesa, justamente na casa daquele que foi o primeiro presidente do novo regime, Manuel de Arriaga.
Legamos, assim, para o vindouro, esta evocação do homem e dos ideais e valores subjacentes à República, cumprindo, no nosso tempo, a nossa obrigação.
Devolvemos à cidade da Horta, ao Faial e aos Açores, a memória requalificada e vivificada deste lugar – de um imóvel originário do séc. XVIII, classificado de Interesse Público, também conhecido como a Quinta do Arco, que foi a residência permanente da família de Manuel de Arriaga e onde a ilustre figura faialense viveu a sua juventude até partir para Coimbra em 1861.
Ultrapassando o conceito da tradicional da “casa museu”, este projecto – que representa um investimento de mais de dois milhões de euros – foi desenvolvido não só para se constituir como um centro evocativo da personalidade de Arriaga como também para uma abordagem informativa, pedagógica e problematizada de aspectos relevantes da História e da estruturação da democracia e da cidadania na contemporaneidade.
Do programa deste novo equipamento cultural, coordenado pela Direcção Regional de Cultura e pelo Museu da Horta, com projecto museográfico do designer Rui Filipe e da Arquitecta Cláudia Zimerman, destacam-se os espaços para a exposição de longa duração e projecção de filme, para exposições temporárias, consulta de documentação digitalizada e biblioteca e sala polivalente. Proximamente, este equipamento irá dispor de conteúdos de texto também em língua inglesa e em versão Braille, bem como em versão áudio, ficando deste modo ao alcance de um maior número de visitantes.
No futuro será igualmente recuperada a totalidade do reduto verde desta propriedade, composto pelo pomar e horta, que não foi agora integrado na obra face à morosidade do processo de aquisição dos terrenos à Diocese de Angra.
Esta é a oportunidade adequada para agradecer a todos os que contribuíram para a concretização deste projecto. Saúdo, igualmente, todos os que nos estimularam nesta diligência e, de modo especial, os que nos ajudaram através da cedência de peças, desde Maria Isabel de Athayde e Arriaga de Tavares da Cunha Cabral, ao Arqtº José Manuel Corrêa Guedes, ao Museu Santos Rocha, do Município da Figueira da Foz, e à Drª Teresa de Arriaga, neta de Manuel de Arriaga, que teve a gentileza de oferecer um quadro a óleo a esta instituição. Aproveito também para agradecer ao Professor António Reis, que, uma vez mais, aceitou proferir uma conferência sobre o tema “Manuel de Arriaga: um intelectual político entre o sonho e a realidade” – que terá lugar hoje, pelas 21 horas, no auditório da Biblioteca Pública e Arquivo Regional João José da Graça.
Manuel de Arriaga foi um homem que se evidenciou pela sua integridade política, pela convicção com que defendeu os seus ideais e pela vontade de transformar o país numa sociedade mais justa, mais instruída e mais desenvolvida. Por isso, bem podemos dizer que Manuel de Arriaga é um daqueles que serviram e servem de referência às gerações que se lhes seguiram. O programa museológico adoptado para este equipamento parte, exactamente, da extrapolação desse perfil para uma reinterpretação à luz dos desafios políticos e éticos actuais. Desafios daqueles tempos, do nosso tempo e, afinal, de todos os tempos.
Tal como outros, antes e depois, Manuel de Arriaga é um dos contribuintes para o património indelével da doação açoriana à cultura portuguesa e universal. É natural, pois, que o celebremos e o façamos de forma durável.
Homens como ele estão ainda mais expostos a enfrentar dissabores e grandes contrariedades ao longo da vida. Mesmo entre os seus e na sua terra natal. E assim aconteceu. Um deles, muito provavelmente neste meio, quando afirmou as suas convicções republicanas, ainda durante o regime monárquico: o seu pai, patriarca de uma família aristocrática faialense e miguelista convicto, não aceitando as opções político-ideológicas do filho, cortou relações com ele e rejeitou-o. Manuel de Arriaga carregou esse revés afectivo e foi trabalhar para sobreviver e concluir a sua formação universitária.
Em Coimbra, no meio académico, revelou os seus dotes oratórios e a sua capacidade argumentativa participando em tertúlias filosóficas e políticas, onde se encontravam, entre outras personalidades, também dois dos maiores intelectuais açorianos da sua geração – Antero de Quental e Teófilo Braga. Aí terá optado pelo republicanismo democrático, sem aderir aos radicalismos, rejeitando o anticlericalismo e o jacobinismo.
Homem de acção, organizou comícios e participou em manifestações. Pelo facto de ter liderado uma delas, por ocasião do Ultimato Inglês, contra a submissão do governo aos interesses estrangeiros, foi preso num navio, em conjunto com Jacinto Nunes, até ser amnistiado.
Apesar de ter sido derrotado em algumas eleições – o que, sei bem do que falo, pode ser um forte estimulo para a prática cívica e a valorização da tolerância –, Arriaga foi finalmente eleito deputado pelo vizinho círculo do Funchal em 1882, tendo sido o segundo republicano a franquear as portas do Parlamento. Nesta qualidade, continuou defendendo princípios ainda hoje recorrentes: a liberdade de consciência, a liberdade de expressão e a liberdade de associação, o melhor acesso ao ensino ou, em geral, a construção de uma sociedade mais justa.
As palavras de Raul Brandão dirigem-se no sentido da verticalidade do seu carácter quando o definiu como um “homem profundamente altruísta e magnânimo, de uma grande bondade e honradez”.
Instalado o regime republicano, tornou-se numa das suas principais figuras, o que conduziu à sua eleição como primeiro Presidente da República. Numa atitude sempre conciliadora para evitar as sangrentas divisões no campo republicano, acabou, porém, de forma inglória o seu mandato ao escolher Pimenta de Castro para chefe de um governo. Derrubado pelos mais radicais, Manuel de Arriaga viveu o resto da sua vida atormentado com esse desgosto.
Não perdeu, contudo, a admiração popular, o que se comprova pelo facto de ser um dos cidadãos mais evocados na toponímia do país. A popularidade e prestígio de Manuel de Arriaga fizeram com que o seu nome fosse atribuído a muitos espaços urbanos, quer no território continental e insular, quer nas antigas possessões ultramarinas, apontando-se, actualmente, à volta de sessenta e cinco atribuições no território nacional e quatro nos territórios das ex-colónias. É caso incomum nas páginas da história da toponímia portuguesa.
Hoje, culminando o programa de iniciativas do Governo dos Açores alusivo às Comemorações do Primeiro Centenário da República, reabrimos este lugar, donde deve advir, a partir dos espaços criados entre as suas paredes, a mensagem permanente de homenagem aos homens e às mulheres empenhados nas causas justas, o apelo aos jovens que as devem fazer avançar e a lembrança junto das diferentes gerações sobre a consciência e a retoma de uma ética que vai muito para além dos interesses individuais.
Encerra-se, assim, com esta inauguração, o programa oficial de comemorações desenvolvido pelo Governo Regional.
Mais do que a maioria das Regiões do País, os Açores tiveram e têm boas razões para se associarem à evocação feita. Não só porque dois dos grandes vultos da instalação da República Portuguesa, e seus ideólogos, nasceram nestas ilhas – Manuel de Arriaga e Teófilo Braga –, como também por causa de muitos outros que a serviram como ministros, deputados e senadores. Embora distribuídos pelas mais diversas tendências políticas, os Açores podem orgulhar-se do contributo que deram em prol da República. Com a inauguração desta Casa Manuel de Arriaga, pretendemos também prestar homenagem a todas essas figuras.
Este é, enfim, mais um momento em que podemos e devemos sentir orgulho em sermos açorianos.”
GaCS
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