quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Intervenção do Vice-Presidente do Governo na inauguração da Exposição do Museu do Vinho





Texto integral da intervenção do Vice-Presidente do Governo, Sérgio Ávila, proferida hoje, na Madalena do Pico, na cerimónia de inauguração da Exposição do Museu do Vinho:

“A história do Arquipélago dos Açores é uma história de luta permanente. Luta contra a natureza, a falta de terra, os sismos, os terramotos, os vulcões; luta pela sobrevivência e pela afirmação. Desse combate, obstinado e secular, resultou uma integração num espaço profundamente rural que temos sabido conservar ao longo do tempo.

Esta matriz geográfica e histórica, essencialmente marcada por uma ruralidade e insularidade profundas, tem sabido combinar o mais tradicional com o mais moderno. Periféricas, relativamente à Europa Continental, mas absolutamente estratégicas relativamente à Europa marítima e às dinâmicas atlânticas, constituindo-se, mesmo, como a sua salvaguarda em diversos contextos, as ilhas dos Açores têm-se assumido como um espaço de referência no todo nacional.

O Pico reflecte o exemplo acabado da acção da geografia sobre o curso da história, realidade que determinou a individualização do modo de vida das suas gentes. Com efeito, a infertilidade do solo, de “lajido”, de “mistério” e de “biscoito”, atrasou a ocupação humana e dificultou o desenvolvimento económico. No entanto, esta maldição da terra – apenas 3,4% do solo é arável – aguçou o engenho e a tenacidade dos homens. A vocação vinícola constituiu, assim, o principal elemento diferenciador do Pico na paisagem agrícola dos Açores.

Com sabedoria e criatividade, o homem do Pico triunfou perante a adversidade de uma natureza hostil e de um chão inclemente, transformando pedra improdutiva no seu modo de sustento. Este “milagre picaroto”, tornou possível transformar vastas extensões de pedra em férteis campos de vinha, repartidos numa filigrana de muros de lava preta – os currais. Os vinhedos, como malhas de uma enorme rede, estendiam-se desde a base da Montanha até às barrocas do mar.

Simultaneamente à cultura da vinha, foi sendo construído um diversificado património edificado, constituído por solares, casas conventuais, adegas, armazéns, poços-de-maré, rola-pipas, portos, embarcadouros, alambiques, trilhos de carros de bois, ermidas…, marcas do quotidiano de uma população dedicada ao trabalho árduo da vitivinicultura.

Esta paisagem da cultura da vinha, classificada como Património Mundial da Unesco, corresponde a uma área de excepcional beleza natural e importância estética, obedecendo a uma evidente relação de equilíbrio e cumplicidade entre o homem e a natureza, ao longo dos séculos, desde o povoamento à actualidade. Esta intervenção humana, que, com propriedade, podemos designar como uma verdadeira “epopeia de pedra”, não alterou, nas palavras de Tomáz Duarte Jr., a paisagem: “Porque de mais não se tratou do que a partir da pedra, sobre a mesma pedra, dar um diferente arranjo à pedra. Pedra era e pedra ficou”.

Falar do vinho do Pico é identificar um produto económico que, até meados do séc. XIX, foi um dos principais factores de internacionalização da economia açoriana.

No interior do arquipélago, as diferenças de qualidade e as necessidades de consumo, cedo ditaram uma rede de rotas comerciais que faziam circular o vinho entre as várias ilhas, e entre estas e o exterior. Neste quadro o porto da Horta assumia-se como o importante centro de distribuição da produção do Pico e de São Jorge, enquanto o porto de Angra recebia o vinho da Graciosa e abastecia as rotas transatlânticas no refresco.

No séc. XVII a produção do vinho concentrava-se nas ilhas do Grupo Central, com grande destaque para o Pico. No séc. XVIII, em torno do triângulo Pico-Faial-São Jorge, permitindo o vinho a integração destas ilhas no comércio internacional com a América do Norte, a Europa e o Brasil.

Cedo, pela sua expressiva quantidade e superior qualidade, o vinho do Pico sedimentou uma posição de relevo que se estruturou à volta de três importantes circuitos comerciais: o regional, destinado aos mercados faialense, terceirense e micaelense; o nacional, envolvendo Portugal Continental e o Brasil e o internacional, tendo em vista os mercados europeus e da América do Norte.

Deve, pois, realçar-se que o comércio do vinho assumiu uma importância fulcral na dinâmica económica picoense. Com efeito, o vinho e a aguardente funcionaram quase como a única moeda de troca, permitindo que o Pico ultrapassasse as suas tradicionais insuficiências alimentares. Assim, a exportação vinícola, para os mercados regionais, nacionais e internacionais, garantiu a importação de cereais e outros produtos alimentares de que o Pico era cronicamente deficitário. A grande reputação alcançada pelo vinho do Pico foi tal que seria difícil, hoje, avaliar a importância económica a que esse comércio do vinho deu origem. Durante séculos, e na maior parte da ilha do Pico, a vinha e o vinho foram a única e a principal fonte de rendimento. Em 1852, ano que marca o princípio da decadência deste importante ciclo económico dos Açores e da ilha do Pico, a produção média de vinho faialense era avaliada em 200 pipas, uma insignificância quando comparada com os milhares de pipas que se produziam no Pico. Contudo, a economia dos dois territórios estava, desde há séculos, estreitamente articulada. A perda num dos lados, provocava efeitos consideráveis do outro lado do Canal.

A criação do Museu do Vinho, na vila da Madalena, deve, pois, ser entendida como uma inevitabilidade histórica. A organização de um museu subordinado à temática da vinha e do vinho identifica-se com a principal actividade económica exercida pela comunidade que ocupou este território, desde o seu povoamento. Na Madalena reúnem-se, de facto, várias condições favoráveis para se instalar um museu de memórias e tecnologias agrícolas associadas ao vinho, quer pela extensão e expressão da vinha que domina a paisagem, quer pela existência de um espaço que, durante séculos, foi dedicado ao fabrico do vinho: as instalações agrícolas e funcionais que pertenceram ao Convento do Carmo. Este imóvel, de finais do séc. XVII, inícios do século XVIII, mansão de veraneio dos frades carmelitas sedeados na cidade da Horta, é um dos símbolos arquitectónicos da fase opulenta do Ciclo do Vinho Verdelho, na ilha do Pico.

A localização geográfica privilegiada do Museu do Vinho, o poder mágico da paisagem natural – a vinha, os dragoeiros seculares, o canal, o mar e a Montanha -, a dimensão poética e estética do lugar, a presença de uma arquitectura secular, de pedra vulcânica, em harmonia com a nova arquitectura de Paulo Gouveia, têm vindo a transformar este espaço em lugar de visita turística obrigatória, lugar de memória e de culto, lugar de estudo, lugar de história natural.

O projecto de museografia, que aqui se inaugura, teve em linha de conta, no seu desenvolvimento e implementação, quatro grandes eixos orientadores: 1. a história do Vinho Verdelho do Pico, da sua introdução ao seu desaparecimento e reconversão; 2. uma abordagem pedagógica, didáctica e lúdica ao universo sensorial do vinho, como produto de referência na história dos homens; 3. o Vinho do Pico como imagem de marca e factor de identidade regional; 4. o papel do Museu do Vinho como instrumento ao serviço da afirmação e do desenvolvimento da vitivinicultura na actualidade, colaborando, activamente, em conjunto com os produtores, na promoção e valorização dos vinhos do Pico.

Porque a vinha e o vinho deram, efectivamente, uma imagem à ilha, procurámos com esta estratégia, no quadro modelar dos museus de sítio e de território, desenvolver um projecto museográfico referenciador da nossa identidade local e regional, mas igualmente capaz de se abrir à internacionalização a que são obrigados os museus na actualidade.

Com a reformulação do Museu do Vinho, celebramos também a epopeia do homem do Pico ao longo de séculos e a sua extraordinária capacidade de transformar pedra em vinho. Um vinho que internacionalizou o Pico e os Açores no mundo e se deve assumir como uma memória, um activo económico e uma imagem de marca cultural da Região.”


GaCS/FG

Sem comentários: